terça-feira, 18 de dezembro de 2012

    "Sim, eu espero, espero o tempo que for necessário, porque este lugar é um lugar degenerado, ao extremo!, e a gente precisa que ele volte para dar um jeito nas coisas."
    Árida. Desértica. Uma região que faz jus plenamente ao anátema lançado por Deus sobre Adão: "comerás o teu pão com o suor do teu rosto". Mas é muito suor pra pouco pão. Quero dizer, o pão é proporcional ao suor, em teoria, mas é que há uma gente que se apropria do suor alheio, fazendo seu um pão que, de direito, é de outros.
    Um lugar empobrecido, não por falta de riquezas intrínsecas, mas por excesso de parasitas.
    "Sim, ele há-de retornar, então tudo será diferente", raciocina João, em um conjunto de premissas e conclusões já batido, repisado, repetido incontáveis vezes no seu íntimo. Pensava assim, repetidamente, como que para se convencer de que estava certo, precisava estar mesmo convencido se quisesse convencer alguém.
    No grupo que se reunia em sua casa, casebre, às terças-feiras, era o mais eloquente. Discursava sobre as virtudes do grande Sacerdote, aquele que retornaria para retomar o controle daquela região assolada por crápulas sem escrúpulos.
    Por vezes, muitas, o grupo fraquejava, e um ou outro, já no limiar do desespero, quase colocava tudo a perder. A repentina falta de perspectiva com relação ao futuro agia em uma terrível reação em cadeia que rapidamente, um a um, ia abatendo os que estavam reunidos. Mas João não. De tanto treinar no seu íntimo, fortificar a mente na crença, já estava quase que totalmente vacinado contra qualquer tipo de desalento.
    - Convenhamos, João, já se passaram trinta e dois anos desde as lutas travadas entre o exército do nosso amado Sacerdote e o bando de capangas do coronel Josefino. Muito tempo desde a sua morte.
    - Presumida morte! Vocês falam como se alguém tivesse visto o corpo! Ninguém o viu morto, e eu sei que ele vive em algum lugar.
    - E o que ele espera para aparecer?! Ele, se estiver vivo, numa altura dessas já é um ancião.
    - E o que tem ele ser um ancião?! Tudo de que precisamos é de sua sabedoria. Em um estado de coisas como esse em que vivemos, mais do que de vigor físico, necessitamos mesmo é de uma mente poderosa, apta a nos guiar para a bem-aventurança.


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

    Em qualquer lugar a natureza brota; resiste, bravamente, à tenaz voracidade do homem de rapina. Ao examinar cada fresta de calçada vejo brotar o vegetal, variegado, valente. Às potentes ambições humanas, está imune o céu, que perdurará, ainda que pereça todo o ozônio, ainda que o dióxido de carbono venha a prevalecer, na composição do ar, dentre todos os gases.
    Pensamentos como esses o bombardeiam enquanto caminha através das amplas rotas que cortam e ligam os vários complexos prediais.
    À visão do pombo que sorve a água que escorre do bico de uma torneira, vislumbra ele a terna ligação que ainda pode existir entre o homem e a natureza. Em essência e em verdade, os dois são um só: se nos referimos a eles como dois, é unicamente porque o homem, em sua soberba, em sua sede de domínio, decidiu estar por conta própria, órfão por opção, abandonando a mãe em busca de uma independência impossível. O homem faz parte da natureza. Mais: é a própria natureza, sendo apenas mais uma de suas manifestações. Assim como o Filho é ao mesmo tempo Deus, Pai e Espírito Santo.
    O destino, um dos prédios, não é nada se comparado à caminhada. É tão-somente acessório na sua vida: a burocracia do serviço público a serviço do seu sustento material. Assim como do seu sustento espiritual: porque, no fim das contas, além de lhe pagar as contas, a maçante labuta lhe compra os livros, financia suas noites em claro passadas em busca de uma frase, uma sentença qualquer que possa trazer mais vida à vida. Vida sua, vida dos outros.
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

- O senhor vá me perdoando a franqueza, é que sou filho da terra, e a terra é sincera: só devolve pra gente aquilo que a gente dá a ela...
- Sim, pois diga.
- Penso que esse seu caso de sair por aí a saltitar lugares, como se macaco fosse, nômade, sem casa pra chamar de sua, isso não é vida não!, digo só porque seu amigo sou, ou pelo menos assim me considero.
- Claro, claro que o tenho como amigo, e entendo a sua preocupação quanto a essa minha vida escapulida, de canto em canto.
- Pois num é!, o senhor não se cansa?!
- Sim, de fato; mas você é o primeiro que me pergunta isso.
- Pois venha pra cá morar com a gente, nadar nesses rios de Deus, plantar essas plantas mágicas, se embriagar nesse nosso céu de estrelas graúdas.
- Sim, aceito totalmente o convite, posso estar com vocês um tempo mas não creio que o meu espírito, que a minha vontade vá se conformar: nasci pra andar por aí, colhendo a vida em cada lugar novo, espreitando desesperadamente cada pedaço de cada canto do mundo até poder enfim cobrir o globo todo, e então poder repousar em paz.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

"O pior momento, sim, o pior, é quando o caixão desce e a gente passa a saber, tem a sensação de que a partir daquele ponto a pessoa some do nosso convívio, desaparece da existência, é como se nunca tivesse existido, não, mas não é assim, não desaparece, ah, se fosse!, na verdade a pessoa fica viva como uma ferida, sua ausência mortífera dentro da gente, eu sinto todo dia esse peso do ausente, esse peso do vazio."

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

    Essa ânsia de ser visto, lido, apreciado. Estava nele; e ele totalmente imerso nela. Escrever, escrever, escrever e ver tudo o que se escreve afundar, longe da superfície, longe dos olhos alheios: eis o seu pior pesadelo.
    Uma solução possível seria infiltrar seus textos em jornais, revistas, sei lá, publicações. Mas deveriam ser impressas. Sim, ver as palavras paridas do seu ser impressas, expostas numa folha de papel, essa sim uma epifania, uma realização portentosa.
    Mas, como? Eu conheço alguém que conhece outro alguém que conhece um cara que trabalha num jornal. Um jornal de grande circulação, o principal da cidade, seria perfeito. É, ele conhece alguém. Questão de algumas ligações certas, saber de um jornalista de coluna em crise criativa, que não saiba mais o que escrever e pronto!, inserir aí o meu vírus, literário e letal.
    Naturalmente, seria ele nesse caso um escritor fantasma, ou, como os dados a estrangeirismos adoram dizer, um ghost writer.
    E, quem sabe, se, além da satisfação intelectual, ele pudesse tirar daí alguma vantagem financeira; o colunista agonizante, necessitando manter sua reputação, sei lá, quanto será que ele pagaria por um texto bem acabado? Vejam: as primeiras motivações nunca são materiais, digo mais: transcendem a matéria; as segundas, terceiras, quartas, sim, essas podem ter uma natureza mais mundana e vil.